Escritos na varanda

Imagino-me a escrever na varanda, ao fim da tarde, com o Sol a por-se no horizonte e uma bebida gelada ao lado. Como eu nem sequer tenho varanda, tudo isto é ilusão.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Bob Dylan


Sentados na beira do passeio. Era um dos locais mais prováveis para nos encontrarem. Até porque na altura passava um carro por dia, quando passava. Qualquer local servia, a casa de um, o quintal de outro, o muro da quinta, que na época tinha árvores que davam sombra, mas ali, no passeio era o local favorito, porque, quando os dedos começavam a doer, punha-se a viola de lado e passava-se ao inevitável jogo de futebol com que se acabavam os dias, logo ali ao lado, na rua.

Tocava-se o incontornável José Afonso, o Adriano, o Manuel Freire por exemplo. Sim, estávamos já no pós 25 de Abril e o ajuntamento de meia dúzia de pessoas num passeio a tocar guitarra não constituía já uma alteração à ordem pública, como defendiam os filhos da puta saudosistas do passado.
E depois havia também os Beatles, o Cat Stevens, os Genesis, os Pink Floyd, o Simon and Garfunkel, o Bob Dylan…

Naquela altura não havia notas, só posições, como no kama-sutra.
- Que posição é essa?
- É Ré. Pões um dedo aqui, o outro ali, e o outro mais abaixo. Não é aí, porra, é na casa de trás.
- Ah, ok.
Também não havia pautas, nem livros, nem internet, nem computadores, nem gravações, só uma cassete de vez em quando nas raras vezes em que se conseguia apanhar por acaso alguma música no rádio, sem ser cortado pela voz do locutor ou por publicidade.
A tradição oral funcionava em pleno, quem tinha jeito e ouvido para tirar as músicas, ensinava aos outros.
E assim se fazia música,

Havia o Zé, filho do dr. Souto, que até tinha uma palheta, porque às vezes tocava numa guitarra electrica. Nunca a trouxe para rua e eu nunca a vi, porque nunca fui à sua casa. Também é verdade que nunca fui muito à bola com ele. O Zé, não o Dylan. Agora que penso nisso, não me recordo de alguma vez o Zé ter jogado futebol connosco. Do Bob Dylan gostava, mas na realidade achava as músicas dele um bocado difíceis de tocar. Preferia sem dúvida o Cat Stevens, além de me agradar mais o estilo, tinha mais facilidade em tocar.

De entre todos, o Zé era o maior fã do Bob Dylan. E um dia chegou e disse:
- Eh pá, nunca mais toco Bob Dylan, o gajo fala muito contra as guerras e tal, mas investe o dinheiro em fábricas de material de guerra. Para mim já não vale nada.
Ora toma, aprendi uma lição. Eu não dava nada por ele. O Zé, não o Dylan. Nunca o tinha visto preocupar-se com ninguém e afinal ele preocupava-se com essas coisas.

É daquelas coisas difíceis de explicar (talvez o Freud explique, ou as neuro-ciências) mas uma frase aparentemente banal e ainda por cima dita por alguém de quem não se gosta muito (o Zé, não o …) fica na memória para sempre. E com o passar dos anos fui-lhe dando a devida importância.
Nem sequer sei se a afirmação é verdadeira ou apenas boato, mas também não me interessa, porque não estou a fazer nenhuma acusação. Talvez influenciado por ela, dou comigo a pensar que a aura de contestatário ao sistema durou apenas meia dúzia de discos, passando depois a fazer parte do próprio sistema. E ainda falta a parte da conversão religiosa…

Seguindo a evolução natural das coisas, o grupo da rua foi-se desfazendo, com os diversos elementos a seguirem cada um o seu caminho, mas o gosto por Bob Dylan ficou (pela sua música, não pela sua pessoa).

Mais uns anos se passaram e comecei a trabalhar. Há logo a possibilidade de fazer coisas diferentes, como comprar discos e até ir a concertos.
E quando Bob Dylan veio a Portugal fui vê-lo. No velho Pavilhão do Dramático de Cascais que já não existe. O senhor entrou mudo e saiu calado. Disse boa noite à chegada e despediu-se no fim. Pelo meio abriu a boca apenas para cantar. Quanto ao concerto em si, foi bom claro, nada a dizer.

Parece que agora a Academia Sueca acha que merece um prémio Nobel.

Tss, Tss, Tss