Sentados na beira do passeio. Era um dos
locais mais prováveis para nos encontrarem. Até porque na altura passava um
carro por dia, quando passava. Qualquer local servia, a casa de um, o quintal
de outro, o muro da quinta, que na época tinha árvores que davam sombra, mas
ali, no passeio era o local favorito, porque, quando os dedos começavam a doer,
punha-se a viola de lado e passava-se ao inevitável jogo de futebol com que se
acabavam os dias, logo ali ao lado, na rua.
Tocava-se o incontornável José Afonso, o
Adriano, o Manuel Freire por exemplo. Sim, estávamos já no pós 25 de Abril e o
ajuntamento de meia dúzia de pessoas num passeio a tocar guitarra não
constituía já uma alteração à ordem pública, como defendiam os filhos da puta
saudosistas do passado.
E depois havia também os Beatles, o Cat
Stevens, os Genesis, os Pink Floyd, o Simon and Garfunkel, o Bob Dylan…
Naquela altura não havia notas, só
posições, como no kama-sutra.
- Que posição é essa?
- É Ré. Pões um dedo aqui, o outro ali, e o
outro mais abaixo. Não é aí, porra, é na casa de trás.
- Ah, ok.
Também não havia pautas, nem livros, nem
internet, nem computadores, nem gravações, só uma cassete de vez em quando nas
raras vezes em que se conseguia apanhar por acaso alguma música no rádio, sem
ser cortado pela voz do locutor ou por publicidade.
A tradição oral funcionava em pleno, quem
tinha jeito e ouvido para tirar as músicas, ensinava aos outros.
E assim se fazia música,
Havia o Zé, filho do dr. Souto, que até
tinha uma palheta, porque às vezes tocava numa guitarra electrica. Nunca a
trouxe para rua e eu nunca a vi, porque nunca fui à sua casa. Também é verdade
que nunca fui muito à bola com ele. O Zé, não o Dylan. Agora que penso nisso,
não me recordo de alguma vez o Zé ter jogado futebol connosco. Do Bob Dylan
gostava, mas na realidade achava as músicas dele um bocado difíceis de tocar.
Preferia sem dúvida o Cat Stevens, além de me agradar mais o estilo, tinha mais
facilidade em tocar.
De entre todos, o Zé era o maior fã do Bob
Dylan. E um dia chegou e disse:
- Eh pá, nunca mais toco Bob Dylan, o gajo
fala muito contra as guerras e tal, mas investe o dinheiro em fábricas de
material de guerra. Para mim já não vale nada.
Ora toma, aprendi uma lição. Eu não dava
nada por ele. O Zé, não o Dylan. Nunca o tinha visto preocupar-se com ninguém e
afinal ele preocupava-se com essas coisas.
É daquelas coisas difíceis de explicar
(talvez o Freud explique, ou as neuro-ciências) mas uma frase aparentemente
banal e ainda por cima dita por alguém de quem não se gosta muito (o Zé, não o …)
fica na memória para sempre. E com o passar dos anos fui-lhe dando a devida
importância.
Nem sequer sei se a afirmação é verdadeira
ou apenas boato, mas também não me interessa, porque não estou a fazer nenhuma
acusação. Talvez influenciado por ela, dou comigo a pensar que a aura de contestatário
ao sistema durou apenas meia dúzia de discos, passando depois a fazer parte do próprio
sistema. E ainda falta a parte da conversão religiosa…
Seguindo a evolução natural das coisas, o
grupo da rua foi-se desfazendo, com os diversos elementos a seguirem cada um o
seu caminho, mas o gosto por Bob Dylan ficou (pela sua música, não pela sua
pessoa).
Mais uns anos se passaram e comecei a
trabalhar. Há logo a possibilidade de fazer coisas diferentes, como comprar
discos e até ir a concertos.
E quando Bob Dylan veio a Portugal fui
vê-lo. No velho Pavilhão do Dramático de Cascais que já não existe. O senhor
entrou mudo e saiu calado. Disse boa noite à chegada e despediu-se no fim. Pelo
meio abriu a boca apenas para cantar. Quanto ao concerto em si, foi bom claro,
nada a dizer.
Parece que agora a Academia Sueca acha que
merece um prémio Nobel.
Tss, Tss, Tss