Escritos na varanda

Imagino-me a escrever na varanda, ao fim da tarde, com o Sol a por-se no horizonte e uma bebida gelada ao lado. Como eu nem sequer tenho varanda, tudo isto é ilusão.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A pá e a vassoura


Há quem diga que foram feitos um para o outro. Não é verdade. Nem sequer era daqueles casos evidentes de amor à primeira vista. Não havia ali amor, apenas interesse.
Um mundo inteiro de interesses os separavam. Uma pá da rua e uma vassoura de casa. De boas famílias, habituada a varrer migalhas de pão de ló e borbotos de lã de Caxemira. Um dia saiu à rua, perdeu-se e por lá ficou. Apesar do aspecto mantinha os mesmos sonhos de grandeza e mania da superioridade.
Um dia encontraram-se numa obra. A pá a abrir caboucos, a vassoura a varrer o entulho do passeio. Por onde a pá sujava, a vassoura ia atrás e limpava. Mais uma vez os olhares desatentos a deixarem-se enganar pelas aparências, sobre o quem anda atrás de quem.
A pá, mal a viu, achou que era a vassoura com que sempre sonhara. Ficou, pode-se dizer, apaixonada. Triste ilusão, pobre pá. Sem conhecer nada do seu passado ou dos seus interesses, deixou-se levar pelas aparências, foi o que foi.
A vassoura pelo seu lado sabia muito bem o que queria: queria voltar para casa. É certo que tinham alguns pontos em comum, pois tinham, mas eram mais aparentes do que reais, e de qualquer forma eram manipulados segundo as suas próprias conveniências. Nunca lhe passara pela cabeça arranjar uma pá e muito menos de rua, velha, gasta e a cheirar a suor e pó das obras. O que sonhava mesmo arranjar era um espanador, daqueles com penas de pavão e cabo de marfim.
Enfim, de desilusão em desilusão, de desengano em desengano, lá foram seguindo o seu aparente caminho juntos por força das circunstâncias.
Quis o destino que a obra, a abertura de uma vala para colocação de novas condutas, os levasse a passar na rua onde ficava a casa da vassoura. Não olhou para trás nem pensou duas vezes, logo que conseguiu arranjou maneira de regressar.
O trabalho ficou assim mais duro e solitário para a pá. Abertos os caboucos, tinha depois de tirar, à sua maneira e conforme podia, o lixo dos passeios. Nada que lhe tirasse a capacidade de sonhar. Continuava a sonhar com uma vassoura, mas desta vez tinha que ser uma da sua classe social.