A maré estava a subir, parte do pontão já
estava submerso, não poderiam ficar ali muito mais tempo. O Sol também estava
quase a pôr-se, em breve ficaria escuro. E quando isso acontecesse sairiam
dali, despedir-se-iam, e cada um seguiria para sua casa.
Voltariam a ver-se? Voltariam sequer a
falar-se?
Era talvez o medo de enfrentar o
desconhecido que o impedia de falar. Sabia que não teriam futuro, o que não
imaginava é que o futuro começasse já amanhã.
Sabia que iam haver barricadas e cada um
estaria num lado diferente. O mundo eternamente dividido em classes. E
famílias. As boas de um dos lados, as outras num lado qualquer. E havia também
todos aqueles que não tinham família e por via disso nem direito a barricada
tinham. A carne para canhão.
Ocorreu-lhe que pudessem desertar os dois.
Ah, mas havia dois problemas. Mais uma vez o medo a tolher-lhe os movimentos:
sabia de fonte segura, pois era o seu coração que lho dizia, que gostava dela o
suficiente para fazer isso, mas nem se atrevia a fazer a proposta, pois sabia
também que não tinham nenhuma relação assim tão profunda que o justificasse.
Relação profunda existia, e esse era o
segundo problema, entre ela e o seu mundo, as suas origens, o seu status. E
trocar tudo isso pela companhia de um soldado raso, e ainda por cima do inimigo,
era coisa que estava obviamente fora de questão.
Não tinha explicação para o facto de ter
começado a gostar dela. E acaso essas coisas têm explicação? Gosta-se e pronto.
Começa tudo como se fosse um sonho, deixamo-nos adormecer e quando acordamos vêm as dores todas ao de cima. Custa muito enfrentar a realidade habituados que
estávamos ao sonho.
A preocupação principal agora era com os danos
colaterais. Sabia, mais uma vez de fonte segura, que pela sua parte não lhe
causaria a ela nem sequer um arranhão.
Mas, e ao contrário? Não tinha certezas.
Havia o risco muito grande de as más influências que a cercavam a virarem
contra si. E se isso viesse a acontecer custar-lhe-ia tanto como a morte.
Encolheu os ombros, suspirou e resignou-se
com a sua sorte. No fundo, sabia que histórias cor de rosa que acabem sempre
bem existem apenas na literatura e no cinema. Na vida real não há guião, é tudo
de improviso.