Escritos na varanda

Imagino-me a escrever na varanda, ao fim da tarde, com o Sol a por-se no horizonte e uma bebida gelada ao lado. Como eu nem sequer tenho varanda, tudo isto é ilusão.

sábado, 7 de março de 2015

A casinha


Estava-se bem ali ao Sol e abrigado da aragem, porque apesar do dia claro, era Primavera e portanto a temperatura não era muito elevada.
Tão bem que até se esquecia que tinha que ir preparar o almoço e já passava do meio dia.
Estava sentado no banco de pedra com a guitarra sobre uma das pernas e em luta com as cordas porque When I’m 64 dos Beatles não havia maneira de sair direito. Não tinha ainda sessenta e quatro, como na letra da canção, mas não faltava muito, e talvez fosse por isso, talvez fosse já velho demais para aprender alguma coisa nova.
Sobrepondo-se ao som das notas ouviu o som de passos sobre a gravilha, que se aproximam, e levantou os olhos do braço da guitarra.
Com o Sol pela frente distinguia apenas uma silhueta feminina, que avançava devagar e parou junto ao pequeno portão. Reconheceu-a pela voz quando ela o cumprimentou.
Fez-lhe sinal para entrar, pousou a guitarra e foi ao seu encontro.
- Joana, és mesmo tu? Que fazes por aqui? Há quanto tempo não nos víamos, cinco anos, seis anos…?
À sua frente tinha um rosto triste que se esforçava por sorrir. Cumprimentou-o com dois beijos, baixou a cabeça e disse:
- Tens razão, há muito tempo que não nos víamos, já perdi a conta.
Avançou até ao pequeno banco de pedra, sentou-se, olhou em volta e continuou:
- Já me tinham contado que tinhas mudado para aqui, mas nunca arranjei um bocado de tempo para vir até cá.
- Já aqui estou vai para cinco anos. A casa tem telefone, e eu também, respondeu.
Baixou a cabeça novamente e ficou em silêncio por uns instantes. Por fim disse:
- Eu sei, desculpa. Sabes, procurei-te hoje porque preciso de ajuda, vou deixar o António, aliás já deixei, e não tenho para onde ir, tens algum canto onde eu possa ficar durante uns tempos?
Foi a vez dele ficar em silêncio. A vida não parava de o surpreender. Sabia perfeitamente que resposta ia dar, só não tinha a certeza é se essa resposta seria a mais certa. Do meio do nada o passado surge-lhe à frente, um passado que ele tentava esquecer.
Ninguém sabia, ninguém podia imaginar o quanto a tinha desejado no passado, e sem sucesso, pois ela rejeitara-o. Tantos anos já passaram…
Habituou-se a viver sozinho, a usufruir da liberdade de poder fazer o que quisesse da vida sem ninguém à volta a contrariá-lo ou a quem tivesse que dar satisfações.
Estaria preparado para perder, ainda que temporariamente, essa liberdade, para ter novamente alguém em casa?
Tanto quanto ele julgava conhece-la, sabia que ela não queria nada consigo, foi mesmo a necessidade de ajuda que a levou até ali.
Pela sua parte, achou-se velho demais para ter a veleidade de voltar a pensar nela outra vez. Há dez anos desejara-a loucamente e fora rejeitado. Aprendera a lição. Era muito mais fácil conseguir tocar a música dos Beatles.
Ia ajudá-la com toda a certeza e melhor seria que ela recompusesse a sua vida o mais rapidamente possível de modo a que cada um voltasse a seguir o seu caminho.
Por fim olhou-a nos olhos e disse em tom levemente irónico:
- Sabes bem que te ajudo no que precisares, eu arranjo-te um quarto onde possas ficar à vontade enquanto precisares, só não sei é como uma senhora da cidade se vai adaptar ao campo. Mas primeiro, quem precisa de ajuda sou eu, estava aqui distraído com a música e não preparei o almoço, ajudas-me na cozinha?