Escritos na varanda

Imagino-me a escrever na varanda, ao fim da tarde, com o Sol a por-se no horizonte e uma bebida gelada ao lado. Como eu nem sequer tenho varanda, tudo isto é ilusão.

domingo, 30 de outubro de 2016

Na terra dos dinossauros


Sempre fui bom a seguir pegadas. Por entre trilhos de brontosauros fui seguindo o seu rasto. Cruzei-me com um caçador a quem perguntei se tinha visto uma rapariga vestida com uma pele de corça.
Respondeu-me que sim, tinha visto alguém assim, mas não sabia se era quem eu procurava porque ali todos vestem peles de corça. Acrescentou que ia na direcção da grande rocha onde os pterodáctilos fazem os ninhos.
Agradeci e segui o meu caminho, abstendo-me de comentar que não era bem verdade que todos vestissem peles de corça, só para não arranjar confusões. Eu tirei a minha para não me prender os movimentos e tornar-me mais rápido, e usava apenas uma parra.
No alto da encosta fiz uma pausa e com o meu óculo de pedra lascada percorri o horizonte com a vista.

Nisto toca a campainha e acordei. É o que faz dormir de dia. Dão-nos mais horas para dormir mas não informam que os sonhos não estão incluidos e são por nossa conta e risco.

sábado, 29 de outubro de 2016

A casa dos vasos


Havia sempre lugar para mais um, se não fosse ali seria no pátio das traseiras. Cuidar das plantas era das poucas ocupações, além do tricot e das novelas.
Antigamente ainda tinha um cão e um gato, mas ambos morreram com poucos meses de intervalo e não quis mais nenhum animal.
Agora que o trabalho era pouco e as horas muitas, tinha dificuldade em preencher todos os minutos do dia. Restava dormir, quando conseguia.
E hoje o rádio tinha trazido a má notícia de que a hora ia mudar, podendo dormir mais uma hora.
Ia ser mais uma hora de insónia.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

No jardim, sem a Celeste


No escuro jardim o repuxo jorrava
Uma réstea de luz no meio da ramada
Um casal passava, iam de mão dada
Sentada num banco Celeste esperava.

Soprada p’lo vento a folha esvoaçava
O cão da vizinha, de trela esticada
Puxava a velhota, já meio cansada
Sentada num banco Celeste chorava.

Nos ramos as aves tentavam dormir
Um gato miava, atrás de um arbusto
Sentada a Celeste, só queria partir

Sentou-se direita, refeita do susto
Lá dentro a vontade mandava-a sair
Sentada sorriu, e ergueu-se a custo.


quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Sobe e desce


O entusiasmo descia à medida que o eléctrico subia a encosta. O preço era caro, a qualidade era barata, o espaço era pouco, os passageiros eram muitos, e ainda havia os carteiristas ali misturados no meio da gente.
Depois, como tudo o que sobe desce, havia que regressar ao local de origem, mas desta vez a pé. Assim até havia mais tempo para apreciar aquele recanto pitoresco, que traduzido do dialecto turístico significa sujo.


terça-feira, 25 de outubro de 2016

Bancada de trabalho, parte 6


E agora?
Se calhar dei-lhe hidrofugante a mais e ela hidrofugou-se.
Tadinha, parece uma mosca morta, de patas pró ar.
Agora vou para dentro que o tempo não está para brincadeiras e não quero hidroconstipar-me.
Ah, e também tenho que praticar um pouco de guitarra que é para amanhã não levar (muito) nas orelhas.




segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O limoeiro


Vai fazer no início do próximo ano dois anos, e não tem tido uma vida fácil, está um bocado enfezado.
Primeiro passou tempo demais no parapeito da janela da cozinha dentro de um copo de iogurte. Depois, com a mudança de casa passou para uma varanda dentro de um vaso de plástico minúsculo. Não estava habituado ao frio e constipou-se, perdeu quase todas as folhas e por pouco que não se perdia também.
Voltou para dentro de casa para se tratar e só voltou a sair no início do verão com o calor.
Finalmente passou para um vaso à sua medida. Daqui a algum tempo vai estar a dar limões.

domingo, 23 de outubro de 2016

sábado, 22 de outubro de 2016

A escada dupla


A escada dupla funcionava a duas velocidades.
Subia-se à velocidade que o cansaço permitia e descia-se à velocidade da atracção da gravidade, descontando o atrito nos degraus.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

A árvore que dava janelas


A um canto do jardim tenho uma árvore. Os frutos não são doces nem amargos, mas têm muita fibra e minerais.
Tenho de por luvas para os descascar. Primeiro pego num martelo e tiro-lhes os minerais todos. Depois, com uma serra corto-as em bocados como se fosse para uma salada de frutas. Tem alguns caroços firmemente presos com parafusos ferrugentos que demoram a tirar. Depois de tudo limpo leva-se para o armazém e guarda-se. Serve-se frio.
A árvore chama-se macacaúba.

Horta versão II - 2ª parte


Agora já parece uma horta. O muro de pedra dá muito jeito para me sentar a descansar depois da lavoura.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Hora de recolher


Sopra um vento com sabor a sal. Um vento frio e húmido como são todos os que o outono traz. Lá longe, onde as nuvens insistem em brincar com os raios de sol, o vento vai enchendo os pulmões para depois os despejar sobre esta terra, limpando a poluição e devolvendo à atmosfera a pureza da madrugada.
Prevendo a tempestade, as gaivotas vêm em bandos rompendo o ar com os seus gritos, procurar abrigo para a noite. O peixe pode esperar até amanhã.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Bob Dylan


Sentados na beira do passeio. Era um dos locais mais prováveis para nos encontrarem. Até porque na altura passava um carro por dia, quando passava. Qualquer local servia, a casa de um, o quintal de outro, o muro da quinta, que na época tinha árvores que davam sombra, mas ali, no passeio era o local favorito, porque, quando os dedos começavam a doer, punha-se a viola de lado e passava-se ao inevitável jogo de futebol com que se acabavam os dias, logo ali ao lado, na rua.

Tocava-se o incontornável José Afonso, o Adriano, o Manuel Freire por exemplo. Sim, estávamos já no pós 25 de Abril e o ajuntamento de meia dúzia de pessoas num passeio a tocar guitarra não constituía já uma alteração à ordem pública, como defendiam os filhos da puta saudosistas do passado.
E depois havia também os Beatles, o Cat Stevens, os Genesis, os Pink Floyd, o Simon and Garfunkel, o Bob Dylan…

Naquela altura não havia notas, só posições, como no kama-sutra.
- Que posição é essa?
- É Ré. Pões um dedo aqui, o outro ali, e o outro mais abaixo. Não é aí, porra, é na casa de trás.
- Ah, ok.
Também não havia pautas, nem livros, nem internet, nem computadores, nem gravações, só uma cassete de vez em quando nas raras vezes em que se conseguia apanhar por acaso alguma música no rádio, sem ser cortado pela voz do locutor ou por publicidade.
A tradição oral funcionava em pleno, quem tinha jeito e ouvido para tirar as músicas, ensinava aos outros.
E assim se fazia música,

Havia o Zé, filho do dr. Souto, que até tinha uma palheta, porque às vezes tocava numa guitarra electrica. Nunca a trouxe para rua e eu nunca a vi, porque nunca fui à sua casa. Também é verdade que nunca fui muito à bola com ele. O Zé, não o Dylan. Agora que penso nisso, não me recordo de alguma vez o Zé ter jogado futebol connosco. Do Bob Dylan gostava, mas na realidade achava as músicas dele um bocado difíceis de tocar. Preferia sem dúvida o Cat Stevens, além de me agradar mais o estilo, tinha mais facilidade em tocar.

De entre todos, o Zé era o maior fã do Bob Dylan. E um dia chegou e disse:
- Eh pá, nunca mais toco Bob Dylan, o gajo fala muito contra as guerras e tal, mas investe o dinheiro em fábricas de material de guerra. Para mim já não vale nada.
Ora toma, aprendi uma lição. Eu não dava nada por ele. O Zé, não o Dylan. Nunca o tinha visto preocupar-se com ninguém e afinal ele preocupava-se com essas coisas.

É daquelas coisas difíceis de explicar (talvez o Freud explique, ou as neuro-ciências) mas uma frase aparentemente banal e ainda por cima dita por alguém de quem não se gosta muito (o Zé, não o …) fica na memória para sempre. E com o passar dos anos fui-lhe dando a devida importância.
Nem sequer sei se a afirmação é verdadeira ou apenas boato, mas também não me interessa, porque não estou a fazer nenhuma acusação. Talvez influenciado por ela, dou comigo a pensar que a aura de contestatário ao sistema durou apenas meia dúzia de discos, passando depois a fazer parte do próprio sistema. E ainda falta a parte da conversão religiosa…

Seguindo a evolução natural das coisas, o grupo da rua foi-se desfazendo, com os diversos elementos a seguirem cada um o seu caminho, mas o gosto por Bob Dylan ficou (pela sua música, não pela sua pessoa).

Mais uns anos se passaram e comecei a trabalhar. Há logo a possibilidade de fazer coisas diferentes, como comprar discos e até ir a concertos.
E quando Bob Dylan veio a Portugal fui vê-lo. No velho Pavilhão do Dramático de Cascais que já não existe. O senhor entrou mudo e saiu calado. Disse boa noite à chegada e despediu-se no fim. Pelo meio abriu a boca apenas para cantar. Quanto ao concerto em si, foi bom claro, nada a dizer.

Parece que agora a Academia Sueca acha que merece um prémio Nobel.

Tss, Tss, Tss

domingo, 16 de outubro de 2016

A parra


Talvez porque não tivesse roupa, talvez porque nem sequer tivesse parra que a substituisse, a Lua, que hoje era cheia e super, não se deixou ver. Chamou as nuvens e tratou de se esconder dos olhares indiscretos, alguns até armados com máquinas fotográficas.
As parras é que não gostaram nada de serem rejeitadas. Em protesto, prometem cair como as folhas no outono.

sábado, 15 de outubro de 2016

Bancada de trabalho, parte 5


Quase dois meses depois da última martelada, aí está o reinício dos trabalhos.
Com uma constatação: é que houve um erro no projecto. O vão do comprimento é demasiado grande e a espessura do tampo demasiado pequena, pondo em risco a solidez da estrutura.
Felizmente ainda fui a tempo e a coisa também foi fácil de fazer. Bastou colocar um reforço na parte central.



quinta-feira, 13 de outubro de 2016

O Nobel Prémio


"Come writers and critics
Who prophetize with your pen
And keep your eyes wide
The chance won't come again"
(in The times they are a-changin')

Bob Dylan ganhou o prémio Nobel da Literatura de 2016.
Que mais é que se pode dizer além de dar os parabéns ao Bob Dylan?
- Parabéns Bob Dylan.

Estava em dúvida se haveria de colocar como imagem cimeira deste texto, uma taça ou um cheque. Muitos prémios, alem da taça (ou medalha) que simboliza o reconhecimento, vêm acompanhados de um cheque, que simboliza...
Bolas, não me consigo lembrar o que é que simboliza

Há muito tempo que os tempos estão a mudar. Agora penso naquelas duas canções dele que desde sempre eu toquei, muito, muito, muito, mas mesmo muito mal. Tenho que ganhar vergonha na cara e aprendê-las finalmente. Por uma questão de orgulho pessoal mas também como recordação de alguém que há muito tempo deixou de ser quem era.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

A gripe


Os ursos hibernam quando chega o inverno. Eu hiberno quando chega a gripe. Agora, acordado e mal disposto, verifico que não escrevo no blog há quase uma semana, que continuo a não ter horta, que a minha cómoda está em pior estado do que estava antes de começarem as obras que ainda não acabaram, que já começou a estação das chuvas.
Bonito serviço. E eu que queria tê-la terminado antes da apresentação da peça de teatro. Sim, que a minha cómoda é pobrezinha mas vai participar numa peça de teatro. Quer dizer, vão falar dela lá. É quase a mesma coisa.
Como eu não acredito em milagres, resta-me acreditar que em cerca de um mês consigo pô-la em condições, não digo de uso, mas pelo menos de aparecer condignamente em frente da máquina fotográfica.
Com isto tudo vou continuar a levar nas orelhas nas aulas de guitarra. Ou bem que pego no serrote ou na palheta.


quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Máquina do tempo


Encontrei a máquina do tempo e já fui dar uma voltinha, mas não fui muito longe. Pedalei só dez minutos em direcção ao passado para testar o aparelho.
Verifiquei que está enferrujado.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

As pedras


Que fazer com tantas pedras no meu caminho?
Talvez um muro que me separe do mundo.
Ainda assim é necessário que sobrem algumas, nunca se sabe quando é preciso começar à pedrada.
Depois não digam que não avisei.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Dali


Dali de onde estava não conseguia, mas mudou-se para aqui, pegou no pincel, e qual Salvador, acabou a pintura num instante.


domingo, 2 de outubro de 2016

Horta, versão II


Chegou ao fim o ano zero da horta. Hoje é o primeiro dia do ano um.
Nunca mais as obras estão prontas e eu não vou esperar mais. O problema é se a situação se arrasta, as plantações são provisórias, e antes que cresçam demasiado, têm de ser mudadas para o locar definitivo.