Escritos na varanda

Imagino-me a escrever na varanda, ao fim da tarde, com o Sol a por-se no horizonte e uma bebida gelada ao lado. Como eu nem sequer tenho varanda, tudo isto é ilusão.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Epílogo


A mola azul, farto das desilusões da vida reciclacidou-se, atirando-se de cabeça para dentro do contentor amarelo.
O plástico transformou-se numa bela esferográfica, com que um amante platónico escreve cartas nunca respondidas.
A mola propriamente dita, o arame, faz agora parte do interior de um colchão de molas, pomposamente chamado de ortopédico, colocado no quarto duma pensão a que a modernidade e a fiscalização agora chamam motel, publicitado em cartazes de rua e na rádio local com a frase “mesmo em dias secos, todos os sonhos são molhados”.

A mola laranja foi levada pelo marido da dona, empresário desonesto cujo sucesso medíocre se deve à utilização de esquemas perfeitamente legais. Repousa agora no escritório, a um canto da secretária, prendendo entre os dentes meia dúzia de papéis, os assuntos pendentes.
Escritório esse onde o empresário come as senhoras da contabilidade.
Ironia do destino, o empresário frequenta frequentemente o motel onde jaz o resto da mola azul, para comer as secretárias e as meninas do departamento de marketing.

(Parte 4 de 4 da trilogia "O senhor dos arames")

terça-feira, 29 de abril de 2014

Solilóquio da corda da roupa


- Mas então este tipo foi-se embora e deixou-me aqui sozinha? Querem ver que amuou?
- Estava à espera que eu dissesse o quê?
- Sim, que aquela conversa toda era muito bonita, mas no fundo vai-se a ver e o que eles todos querem sei eu.
- Ainda por cima, um tipo daqueles, todo azul vejam bem, o que é que as minhas amigas iam pensar.
- Já passaram cinco minutos, deve estar por aí a aparecer de novo. Não era nada de deitar fora completamente, mas também só mesmo em último recurso.
- Nunca mais vem? Bem, se não for ele há-de aparecer outro qualquer, espero é que não demore muito.
- E depois aquela conversa lamechas do juntos para sempre e blá blá blá. A verdade é que passar o resto da vida a segurar o mesmo par de cuecas na mesma corda, deve ser cá uma seca…

(Parte 3 de 4 da trilogia "O senhor dos arames")

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Monólogo do estendal


- Bolas, então deixou-me para aqui pendurado, sozinho…
- Não há quem entenda as molas da roupa.
- Aqui para nós, que ninguém nos ouve, não sei o que fazer, será que devo ir atrás dela? Não me pareceu muito convincente, isto do não nunca se sabe quando quer dizer talvez, ou até mesmo sim.
- Mas… e se ela não me quer mesmo? Se eu continuar atrás dela a insistir vai ficar a odiar-me.
- Eu fiz o que podia, quer dizer, o que sabia, mas no entanto…
- E se eu tivesse dito que…? Ah, não, isso não ia dar.
- Já sei, vou fingir que me esqueço dela e quando a vir sozinha, passo por acaso ao pé dela e meto conversa.
- Não, isto já tentei uma vez com aquela mola de madeira e não resultou. Tenho que pensar noutra coisa.
- Eu não queria gastar dinheiro, mas estou a ver que tenho mesmo que comprar o livro “Um estendal de auto-confiança”.

(Parte 2 de 4 da trilogia "O senhor dos arames")

domingo, 27 de abril de 2014

Conversa a dois


- Não temos nada em comum, tu és azul e eu sou laranja.
- Não digas isso, há um fio que nos une.
- É muito pouco, e ainda assim não apaga as nossas diferenças.
- Mas que diferença faz as nossas diferentes cores?
- Não são as cores, são as nossas origens, não vês que pertencemos a cestos de molas diferentes? Tu vieste de um hipermercado chique, eu de uma pobre loja de chineses, não pode haver nada entre nós.
- Oh, minha mola adorada, mas eu quero-te.
- Não pode ser, que diriam os vizinhos se viessem à janela e vissem um par de meias penduradas com molas de classes diferentes.

(Parte 1 de 4 da trilogia "O senhor dos arames")

sábado, 26 de abril de 2014

Mudanças


Que todo o mundo é composto de mudança já se sabia desde Luís de Camões.
Que as mudanças acontecem repentinamente, como um céu limpo que de súbito se torna tempestuoso, também o sabe quem tiver capacidade para observar o mundo que o rodeia.
Agora, acreditar que cada pessoa tem a capacidade para mudar a sua própria vida, apenas o sabem aqueles que ousam mudar.
E são tão poucos.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Sinais dos tempos

                                           Lisboa, Largo do Carmo, 2 Novembro 2013

Tempos de merda estes, em que até os mais ranhosos fascistas assistem a cerimónias comemorativas do 25 de Abril.
Gente de merda esta, cujo único valor (?) que conhecem é o do dinheiro.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Presencia

                                       Oceano Atlântico, 6 Abril 2014

(Presencia pode ser um misto de presença e ausência, um estádio intermédio entre o nada e alguma coisa, a saudade de um tempo que nunca existiu)

Então, vais-te já embora?
Sabes, gostava que ficasses mais algum tempo, para falar verdade o que gostava mesmo era que ficasses.
Mas compreendo, precisas de te levantar, de esticar as pernas, de andar. Pena que não te voltes a sentar.
Sonhei muitas vezes que estavas aqui sentada à minha frente. Eu sei que isto não faz sentido, porque o mundo é construído por pessoas que andam, dos sentados não reza a história, mas que queres, ficava contente se pudesse ficar aqui sentado contigo à minha frente.
No fundo, o problema deve ser da cadeira. Todas as cadeiras têm um problema e esta não é excepção. Por mais confortáveis que sejam, as pessoas têm que se levantar, não é?
A tua cadeira está vazia. Já te levantaste. Sem te virares, sem te despedires, partiste. Talvez não me conheças, talvez nem sequer saibas quem eu sou.
Ou talvez eu próprio não saiba quem tu és.


terça-feira, 22 de abril de 2014

Emergência


Quebrar em caso de emergência.
Não, não é uma janela com vista para o mar, é mesmo para quebrar em caso de emergência.
Os enjoados devem rodar os calcanhares cento e oitenta graus, dirigir-se à amurada cuja imagem está reflectida neste vidro, por a cabeça do lado de fora e abrir as goelas.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

domingo, 20 de abril de 2014

A luz


Não havia muito para ver, ainda assim a luz abstracta iluminava as texturas concretas que desenhavam a penumbra. Risco por risco, linha por linha, sombra por sombra,  até onde os raios de luz alcançavam.
Este padrão repetitivo de curvas ondulantes, ondulando ao sabor das ondas, constituía o pano de fundo perfeito para um vomitado a três dimensões.

sábado, 19 de abril de 2014

Abril


Onde o vento cortar amarras
Largaremos pela noite fora
(José Afonso)

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Noite


Num mundo de pesadelo, sonhar é subversivo. E eu tive um sonho. Ao contrário dos sonhos normais em que se dorme, eu acordei. Ignorando o apelo dos lençóis, saí para o mundo.
Onde esperava encontrar luz, encontro apenas uma luz. Pior do que não haver luz ao fundo do túnel, é nem seque haver túnel.
Luz havia, mas fraca demais para iluminar a escuridão.


quinta-feira, 17 de abril de 2014

Manhã


A manhã dissipa as trevas que a madrugada guardou.
Algumas dúvidas porém permanecem.
E, se bem que em teoria a linha do horizonte tenha sempre trezentos e sessenta graus, na prática só às vezes é que a linha do horizonte tem trezentos e sessenta graus.
Quando isso acontece, podemos dizer que estamos ou numa ilha ou num barco, o que é quase a mesma coisa, porque um barco é assim a modos que uma ilha só que com rodas, move-se.
E se uma ilha, fixa ou móvel pode ser recomendável, já quanto aos ilhéus, é preciso muito cuidado.
É que há ilhéus e ilhéus, não são todos iguais. Estou obviamente a referir-me ao adjectivo e não ao substantivo.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Madrugada


Às seis da madrugada o azimute está um bocado descentrado. Com mais grau ou menos grau, ainda as pernas não se (re)habituaram ao balanço do mar, o óculo mostra imagens desfocadas onde não se avista terra, e o ponteiro da bússola indica água por todos os lados.
Que diria o astrolábio se fosse vivo?
Não havendo sereias, a atracção faz-se pelos pólos opostos, já que os meridianos, sendo paralelos, nunca se encontram.


terça-feira, 15 de abril de 2014

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Funchal


No tempo em que a vida era a preto e branco, o Funchal era preto e branco.
Depois perdeu o preto e durante muito tempo foi só branco.
Agora é novamente preto e branco.
Sinais dos tempos.
Os troca tintas andam aí de novo, e a levantar cabelo.
Trocam as tintas e trocam-nos as voltas à vida.
Enquanto não nos unirmos e os impedirmos.

domingo, 13 de abril de 2014

Um dia novo

                                       Oceano Atlântico a sul de Portimão, 6 Abril 2014

Um dia novo a chegar
E eu aqui no meio do mar.
Um dia novo a nascer
E eu sem te poder ver.
Um dia novo sem ti
É um dia que eu perdi.

Ao longe já se vê terra,
E por sobre aquela serra,
Há um caminho sem fim,
Que me vai levar a mim.
Em breve estarei contigo,
E tu estarás comigo.



sábado, 12 de abril de 2014

O balanço


Ao contrário do que possa parecer não venho falar do balanço do barco, mas sim do meu balanço, isto é, do balanço que eu faço das nossas actuações.
E é claro que faço um balanço positivo. Correu tudo lindamente, apesar dos erros e enganos, talvez até em maior número do que nós poderiamos esperar. Mas mesmo os erros e enganos não comprometeram o normal andamento da representação, conseguimo-nos safar sem gaguejar, e isso é sem dúvida uma enorme satisfação.
Com estas duas representações encerrámos um ciclo, o da nossa apresentação. A prova de fogo aconteceu em Novembro passado e conseguimos ultrapassá-la. Cada um de nós provou a si próprio, que era capaz. Agora tratava-se apenas de dar continuidade a tudo o que fizemos anteriormente. Se por um lado havia a facilidade de já conhecermos a peça, por outro lado tivemos de, em cerca de duas semanas refazer as falas de uma colega ausente, e habituarmo-nos ao novo espaço e aos balanços do barco.
Cada um fala por si evidentemente, mas pela minha parte notei muito mais descontracção do que na estreia.
Agora, as Conversas sobre o amor vão para uma gaveta, até um dia. Seguem-se novos desafios, cada vez mais difíceis e exigentes, mas por aquilo que já vi até agora, serão certamente superados.
Tudo está bem quando acaba bem, diziam eles.
O que acontece é que isto não acabou, ainda agora está no começo.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Conversas sobre o amor - Apresentação II


E à terceira não foi de vez. Depois da nossa estreia em Novembro do ano passado, em que a filmagem saiu toda desfocada, e da primeira apresentação do dia, em que a câmara ficou desviada para a direita, agora a câmara ficou desviada para esquerda.
No entanto continuo a acalentar a esperança de um dia vir a conseguir fazer uma filmagem de jeito.

Quanto à representação em si, devo dizer que apenas os balanços do barco impediram que fossemos ovacionados de pé. Ou isso ou então outra coisa qualquer. O sucesso foi total. Pareceu-me ate, apesar da escuridão e da miopia, vislumbrar pela sala alguns rostos com feições indianas, certamente emissários de Bollywood em busca de novos talentos.

Agora, depois de uns dias de merecido descanso para esbanjarmos o cachet, vamos-nos concentrar n' A birra do morto.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

A vela


Às vezes até o dia mais claro perde a sua luz. Sua é como quem diz, porque nada é de ninguém, nem a luz, nem o dia. Então a sombra, que espera escondida atrás de cada objecto, avança triunfante, disposta a mergulhar na penumbra dos sentidos a razão única da existência, a faculdade de cada um trilhar o seu próprio caminho.
Cada um tem o direito de trilhar o seu próprio caminho, porque cada um tem o direito de ser diferente dos demais. Se fossemos todos iguais, quais carneiros em rebanho, seria um engarrafamento descomunal.
Mas aí, no momento em que a luz e as trevas trocam de lugar, entra em cena a iluminação artificial.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Conversas sobre o amor - Apresentação I


E pronto. À segunda vez conseguiu-se uma filmagem minimamente decente. Não é perfeita, porque a perfeição não existe, procura-se, e isso é que interessa.
A actuação correu bem, muito bem até, diria eu, atendendo ao pouco tempo para ensaiar, e às várias condições de palco e de som diferentes das que estávamos habituados, as quais se notam mais devido como disse ao pouco tempo para ensaio.
Esta é a primeira apresentação do dia (fizemos duas).
E até os enjoadinhos se portaram lindamente.

terça-feira, 8 de abril de 2014

O mundo ao contrário

                                    Algures no Oceano Atlântico, 4 Abril 2014

Não é ilusão, é realidade. A realidade nada mais é do que a ilusão distorcida.
E para muitos, o mundo, o mundo dos estômagos revoltados, virou-se mesmo ao contrário.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Manuel de Falla



Manuel de Falla é um compositor espanhol do qual gosto bastante.
Este sábado estive na sua terra natal, frente à casa onde nasceu e resolvi deixar aqui esta pequena homenagem.



domingo, 6 de abril de 2014

A corda

                                          Lisboa, 4 Abril 2014

Ó sôr Comandante, uma cordinha nova talvez não fosse má ideia.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A rocha

                                           Cascais, 29 Março 2014

A rocha continua a ser batida,
P'la água, em movimento, enfurecida.
A rocha continua no lugar,
Vendo a água, em espuma, se retirar.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Contentores

                                         Lisboa, 22 Março 2014

A carga pronta metida nos contentores
Adeus aos meus amores que me vou
P'ra outro mundo
(Xutos & Pontapés, Contentores)

terça-feira, 1 de abril de 2014

Primeiro de Abril

                                         Cascais, 29 Março 2014

Que significa uma janela aberta para o mar, no dia um de Abril?
Que o país está a meter água?
Não... deve ser mentira.