Escritos na varanda

Imagino-me a escrever na varanda, ao fim da tarde, com o Sol a por-se no horizonte e uma bebida gelada ao lado. Como eu nem sequer tenho varanda, tudo isto é ilusão.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Uma rua da minha infância


A rua talvez não levasse a nenhum lado, a nenhum sítio onde lhe interessasse ir, mas por curiosidade seguiu por ali fora.
Apesar de nunca ali ter estado, a rua recordava-lhe uma outra, na aldeia, onde o levavam algumas vezes nas férias. O mesmo traçado sinuoso, o mesmo empedrado, o mesmo tipo de janelas.
Sempre tivera muita curiosidade em descobrir o que estava para além de uma rua. Na idade de estar na rua, estar na rua era um luxo raro, e descobrir-lhe o fim era o supra-sumo da sensação de liberdade.
Era perigoso, diziam-lhe. Podia perder-se, ou até mesmo sujar os calções. Pela maneira como o diziam achava que as duas situações tinham o mesmo grau de gravidade.
Lembrava-se da primeira vez que fora até ao fim de uma rua. De repente acabaram as casas e em frente o grande vazio. Um campo imenso cheio de ervas que lhe pareciam daninhas, de mato assustador cheio de picos, de árvores dispersas às quais não sabia atribuir nome, até onde a vista alcançava, o cume de uma serra perdida na linha do horizonte.
Voltara para trás com medo de se perder. Ou de sujar os calções.
Não chegou sequer a sentir o cheiro do campo. O odor da lavanda, entranhado na roupa, no corpo, nas mãos que tinha de lavar com frequência, para não estarem sujas, não deixava sentir mais nada.
Enquanto caminhava, no fundo dos seus pensamentos desejava que a rua desembocasse num campo aberto.
Tarde, muito tarde, descobrira o cheiro do campo.
Tarde mais ainda a tempo.


segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Transbordância


Óbidos.
A vila inteira está sob aviso verde. Um mar de flores e arbustos cobre toda a vila. As ondas verdes chegam a transbordar dos muros e a invadir a via pública.

domingo, 28 de setembro de 2014

Proibido obrigar


Proibido e obrigatório?
Proibido ou obrigatório?
E se fosse antes facultativo?

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

A mão aberta


O cão só morde quando fecha a boca, e eu só te agarro quando fechar a mão.
E não te hei-de largar.

O dia em que mudou de rumo


“Mudem de rumo, mudem de rumo
Já lá vem outro carreiro” (a) gritaram às formigas.
E as formigas mudaram de rumo. Porque vinha lá outro carreiro.

No seu caso, não havia nenhum outro carreiro. Apesar disso, ou talvez mesmo por causa disso, resolveu mudar de rumo. Estava farto daquele rumo que não levava a lado nenhum.
A partir de agora o rumo, se quisesse, é que teria de o seguir a ele.

   (a) Da canção “A formiga no carreiro” de José Afonso


terça-feira, 23 de setembro de 2014

O dia em que choveu demais


Choviam críticas de todos os lados. Era porque tinha feito desta maneira, porque não devia ter feito daquela maneira, porque tinha ido por aqui, porque não devia ter ido por ali, porque tinha dito isto, porque devia ter dito aquilo, porque não gostava de fazer, porque queria ter feito, e sabe-se lá o que mais.
Não havia guarda-chuva que aguentasse. Ficou todo molhado.
Porém, mal veio o Sol, a água desapareceu num instante e ficou novamente seco.
Mas, sem saber porquê, a sensação de humidade permanecia.


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O dia em que as flores murcharam


O jardim da esperança tem um canteiro chamado utopia.
Nele as plantas alimentam-se de sonhos.
Em noites de tempestade a chuva ácida da realidade cai, matando os sonhos.
Sem sonhos para se alimentarem as plantas da utopia morrem, e com elas murcham todas as suas flores.
É preciso semeá-las de novo.

(Quanto mais me bates mais eu gosto de ti, poderia também ser o título deste texto. Ou outra coisa qualquer. Afinal vale tudo. Quando alguém diz “temos o direito de ser humilhados” num debate sobre as praxes académicas, não há mais nada a dizer. Para responder a isto teríamos de descer a esse nível mental.
Para terminar e para quem não percebeu este texto é sobre o referendo na Escócia, que ainda não foi desta que se tornou independente.)


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O dia da esperança


Hoje é o dia da esperança. Esperança em que alguma coisa mude e que seja o inicio de toda uma mudança à escala global.
Hoje vota-se um referendo pela independência na Escócia e apesar de todas as mentiras, pressões, chantagens e falsas promessas com que o poder central tenta intimidar as pessoas, espero que os escoceses não tenham medo de assumir a sua verdadeira identidade.
Espero que ganhe o "Sim à independência" e que sirva de exemplo a todos os povos que lutam pelas suas liberdades.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Alternativa

O escrito de hoje não tem fotografia a acompanhá-lo. É uma alternativa a (quase) todos os outros, que têm sempre uma foto ilustrativa.

Também não fala de touros nem dos bois que os andam a tourear, torturar, matar.

É antes de mais uma homenagem a Manuel João Vieira, o candidato a candidato político que disse mais ou menos isto: “se for eleito demito-me!”.

Ninguém o diz, mas quase todos o fazem. Desde treinadores e presidentes de clubes desportivos, passando pelas mais diversas organizações, governamentais ou não, até a políticos. Sobretudo políticos.

Como em tudo na vida, a demissão é, dependendo do lado de onde se estiver a ver, um acto de heroísmo ou de cobardia.
E tal como a matemática e a estatística, pode ser justificada da maneira que se quiser. E por absurdo que possa parecer, tem-se sempre razão.

A verdade é que cada vez há menos alternativas. Agora foram os do partido dos animais. É a natureza (das coisas).


domingo, 14 de setembro de 2014

O caminho descendente


No caminho descendente
Vão todos em alvoroço
Acreditam que à frente,
A estrada tem novo troço.
E seguem alegremente
Atados pelo pescoço

No caminho descendente
Ninguém pensa ou reage
Interessa que vá contente,
E saboreie a vernissage.
Apelidam de demente
Quem é diferente ou quem age.

No caminho descendente
Vão todos a ver navios
Seguem todos a corrente,
Sopram velas sem pavios,
Batem palmas de contente
Ao cruzarem novos rios.


sábado, 13 de setembro de 2014

Aponte


- Aponte!
E eu apontei. Apontei para o largo mar de água à minha frente, que por acaso é um rio, e que de tão largo se estende quase até onde a vista alcança.
- Foi por ali?
- Sim, foi por ali.
Foi por ali que ela foi e nunca mais voltou. Retirou-se depois da minha resposta. Presumo que fosse por ali também.
Eu fiquei aqui, a ver o largo mar de água que por acaso é um rio, a espraiar-se à minha frente. Sobre as águas a comprida ponte que liga à outra margem, a centopeia marinha de cem patas cravadas no fundo do leito do rio que parece um mar.

Há quem vá por ali e não volte.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Tempo


Dezembro de dois mil e oito. É a data de nascimento desta fotografia. Tão pouco tempo de vida e tanta coisa para contar. Fui encontrá-la enquanto procurava algo sobre o que escrever hoje, e deparei-me com isto.
À falta de melhor, tive de me contentar com o que encontrei. Porque o que é verdade hoje pode não ser amanhã, e hoje estou virado para o tempo. Não o atmosférico, que esse está de chuva apesar de estarmos no verão, mas o outro, a quarta dimensão.

No tempo em que esta fotografia foi tirada havia tantas coisas diferentes. Encontrei-as junto com esta imagem. Não as queria encontrar, mas aconteceu. Não as queria lembrar, mas recordei-as. Não as queria ver, mas lá estavam elas a olhar para mim.
Do alto dos seus quase seis anos de existência, esta foto lembrou-me que o tempo não passa, fica. Fica na memória do esquecimento. Pronto a reaparecer quando menos se espera.

Não era sobre o tempo de há seis anos atrás que eu queria falar, era sobre o actual. Salvaguardando as devias distâncias e apesar das semelhanças e das diferenças, a espiral do tempo traz de volta histórias que se repetem ao longo dos ciclos da vida.
Talvez… a falta de motivo para falar dos dias actuais, seja o mesmo motivo que me levou a recordar os dias do passado.
Talvez…


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

As vinhas da raiva


Estamos na época delas, mas isso não justifica tudo.
Há até quem da uva só lhe prove o bago e esses são os piores.
Mas no calmo remanso da sombra da parreira, nas tardes ensolaradas e quentes de final de verão, descobre-se afinal que por debaixo da parra quem vai nu não era rei, quem segura o manto cobre-se com o manto diáfano do ridículo, quem faz rir tem vontade de chorar, e apenas a plebe se mantém igual a si própria, aceitando servilmente a inferioridade imposta e abanando freneticamente a bandeirinha à passagem do cortejo, no insano desejo de ser notado.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Tudo ou nada?


- Agora é que estragaste tudo!
- Tudo? Mas... não havia nada, já não havia nada!

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

A parede, o beiral e as flores


Uma parede branca, um beiral de telhado e um arbusto com flores vermelhas. Esta trilogia poderia definir uma casa portuguesa com certeza, embora possam haver outros tributos das casas portuguesas.
Mas não. A casa existe em Portugal, foi construída por portugueses, é habitada por portugueses, mas é uma casa do mundo. Onde cabem todos os ideais de liberdade e igualdade do mundo inteiro.
Os nacionalismos como se sabe são visões limitadas, tacanhas e retrógradas da realidade.


domingo, 7 de setembro de 2014

Polovetsian dances


Quatro meses depois de começar a estudar consegui chegar ao fim desta música. É tão fácil, se eu estudasse mais tempo não tinha demorado tanto a aprendê-la.




sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Movimento perpétuo

                                Dezembro

O movimento dos astros em geral e do Astro Rei e particular funciona como um calendário. No caso do Sol, funciona até como um relógio.
Através dele sabe-se em que altura do ano estamos. 

                               Janeiro

Era assim que os povos da antiguidade se orientavam, era assim que sabiam quando era altura das secas ou das cheias, quando era altura de plantarem batatas ou nabiças. Durante milhares de anos não havia relógios, nem papel onde pudessem ser impressos os famosos calendários com meninas nuas.

                                Fevereiro

É pretensioso, errado, falso, julgar-se que olhando para os astros se fica a saber se uma pessoa é boa ou má, se tem sorte ou azar, ser é rica ou pobre, se é gorda ou magra.

                                Março

É um bocado difícil de explicar, e é ainda mais difícil de entender.

                                Abril

Fotos tiradas todas a partir do mesmo local, em diversos meses do ano, mostrando o movimento aparente do Sol


                                Maio


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Vocação


Sentou-se ao teclado do computador, abriu o facebook, deu uma olhadela pelas últimas postagens e escreveu:
- Respirar é maravilhoso. Se também concordas, compartilha.

Carregou em “Publicar” e ficou ali, de sorriso nos lábios a ver o seu texto aparecer no topo da sua página inicial, ao mesmo tempo que era partilhado com os seus quinhentos e noventa e sete amigos.
Tinha tido esta ideia enquanto se dirigia para casa de autocarro e mal podia esperar por chegar junto do computador e escreve-la.

Todos os dias, quando abria o computador ficava maravilhada com as inúmeras mensagens que recebia sobre temas tão diversos como a maravilha da vida, ou a maravilha da existência, ou até a maravilha da existência da vida. Textos maravilhosos, acompanhados quase sempre de maravilhosas imagens de raminhos de flores, de anjinhos encarrapitados em nuvens, de anjinhos encarrapitados em nuvens rodeados de raminhos de flores, ou até de gatinhos fofinhos, ou cãezinhos maravilhosos, ou gatinhos fofinhos junto a cãezinhos maravilhosos.

Sempre quisera escrever qualquer coisa em retribuição da imensa amizade e simpatia que recebia dos seus quinhentos e noventa e oito amigos. Hoje adicionara mais um.
Qualquer coisa que não fosse apenas clicar em “gosto” ou “partilhar” ou escrever “oh, que flores tão maravilhosas”, ou “oh, que anjinho tão lindo”, ou “oh, que gatinho tão fofinho” ou “oh, que cãozinho tão querido”. Mas não sabia o quê.

Hoje finalmente conseguira. E enquanto desligava a computador agradecia mentalmente ao seu anjinho da guarda por a ter ajudado a encontrar frase tão profunda. Sozinha não teria conseguido.


quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Talvez te espere


Olhou mais uma vez para o relógio, um pouco a medo, temendo que os ponteiros, por via da pilha nova que colocara na véspera tivessem desatado a corre atrás um do outro cheios de energia e chegassem primeiro que ele à hora marcada.
Mas não, verificou suspirando de alívio, ainda faltavam vários minutos para a hora marcada e os ponteiros moviam-se com a mesma lentidão de sempre. Moviam-se à velocidade de sessenta eternidades por hora. Cada minuto que esperava por ela parecia-lhe uma eternidade.
À hora marcada, chegou ao local marcado. Ao local marcado por si, onde resolvera esperá-la, desde que resolvera esperá-la. O banco de jardim lá estava à sua espera. Era a única coisa que o esperava.
Sentou-se e esperou.
À hora habitual ela apareceu ao fundo do caminho, caminhando em passos cadenciados e seguros, passos de quem sabe para onde vai.
À medida que se ia aproximando a sua figura ia aumentando de tamanho, deixando de ser uma figura minúscula do tamanho de uma formiga, até atingir a altura da mulher que conhecera dez anos antes no momento em que passava em frente do banco onde estava sentado, diminuindo depois de tamanho à medida que se afastava pelo lado oposto.
Tal como todos os dias, seguia-a com o olhar, desde que aparecia, pelo seu lado direito, até que desaparecia ao fundo do caminho pela sua esquerda.
Tal como todos os dias, o olhar dela mantinha-se sempre fixo em algum lugar, no infinito, à sua frente.
Só então, depois de ela desaparecer de vista se levanta, virava à esquerda também e iniciava o caminho de regresso a casa.
Mas neste dia aconteceu algo de diferente. Quando passava em frente do banco onde estava sentado, parou, deus dois passos como que coxeando na direcção do banco de jardim e sentou-se na outra extremidade. Baixou-se, tirou um sapato, virou-o ao contrário e sacudiu-o fazendo sair uma pedra que lá tinha entrado. Calçou-o novamente, levantou-se e continuou o seu caminho de todos os dias.
Ao fim de alguns minutos, que pareceram eternidades, desapareceu por fim na última curva do caminho.
Levantou-se então, virou também à esquerda e antes de começar o caminho de regresso pensou “talvez te espere amanhã”.