Escritos na varanda

Imagino-me a escrever na varanda, ao fim da tarde, com o Sol a por-se no horizonte e uma bebida gelada ao lado. Como eu nem sequer tenho varanda, tudo isto é ilusão.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Horta funerária


Estragaram-me tudo. Restam apenas uns tomateiros espezinhados. As canas que eu poderia reaproveitar desapareceram, presumo que foram para o lixo. O saco de adubo que estava mais de meio continua lá sim, mas roto e sem conteúdo.
Que pedreiro é este que coloca pedras de mármore ao alto espetadas na terra, em vez de as assentar em cima do muro? Deve ter errado a vocação, devia ser coveiro. Agora basta colocar outra pedra por cima e pronto, fica ali um belo jazigo. E não há morto nenhum que se possa queixar de falta de espaço.
O único lado positivo é que eu, que sempre fui um zé ninguém, finalmente tenho onde cair morto.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Em busca da osga perdida


Não gosto disto.
Estou aqui quase há um ano e até hoje não vi uma única osga perto da casa.
Agora que está tudo limpo e pintado de branco, venho à rua e... elas andem aí.
Gostava mais quando isto estava tudo sujo.




terça-feira, 27 de setembro de 2016

Abre-te porta


E a porta abriu-se
De par em ímpar.
A janela riu-se
Deixou-se levar.
Ficaram portadas
Umbreiras vazias
Casas arrendadas
De avós e tias.
À noitinha o frio
Costumava entrar
Até a melga do rio
Vinha visitar.
Agora é diferente
É tudo actual
Está arranjada à frente
Atrás, e no quintal.
Ficou a casa nova
Branca, a quem a vê,
Até ficou à prova
Da radiação UV.

domingo, 25 de setembro de 2016

A merenda


O Sol já se despedia, os seus longos raios quase paralelos ao chão projectavam sombras infindáveis.
A vida, aquela que mexe, já há muito que tinha abandonado o local. Só ele continuava ali,
Foi só quando uma das muita formigas que até agora tinham mantido uma distância segura, lhe subiu pela sandália e o começou a picar, que se apercebeu da necessidade de regressar.
A toalha, segura apenas por uma ponta debaixo do cesto do piquenique, era presa fácil do vento e sacudia migalhas em todas as direcções, para grande satisfação das formigas, que assim o tinham deixado em paz até agora.
Qualquer coisa tinha corrido mal e não sabia bem o quê. A meio ela foi-se embora e deixou-o ali especado. Tão embrenhado nos seus pensamentos que se esqueceu de comer.
Deitou a mão à cesta e lá estava quase tudo, embora só se salvasse o que estava em caixas de plástico, o resto tinha sido tomado de assalto pelas formigas.
Sacudiu tudo o melhor que pode, e voltou a arrumar o que podia aproveitar, o resto foi para o saco do lixo.
Já com a mochila às costas e a caminho do carro ocorreu-lhe uma ideia. Talvez o problema fossem as sandes de atum. Talvez ela não gostasse de sandes de atum.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Sonho de criança


Lembro-me que se chamava Susana, tinha um nariz pequeno arrebitado e um primo que não gostava nada que eu falasse com ela.
Depois, na passagem da escola primária para o ciclo, desapareceu, mais o respectivo primo. Mudou de escola? Mudou de casa? Mudou de vida?
Para mim a vida mudou, pois que deixei de a ver.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A preto e cores


Com o despontar do dia surgiam as cores que em breve iluminariam a escuridão interior. Talvez a janela se abrisse e os raios de Sol misturados com o canto dos pássaros derrotassem as trevas que teimavam em permanecer.
Depois o perfume das flores e o murmúrio do vento invadiria todos os recantos levando para longe o torpor matinal.
Estava inventado o despertador perfeito.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Calor tropical


A velha palmeira desdentada e desfolhada, ainda assim produz alguma sombra para atenuar o calor que se faz sentir.
Talvez não por muito tempo, qualquer dia cortam-na. Para evitar o risco de cair, dizem. Acontece a quase todas as árvores, excepto àquelas que caem.
É que de vez em quando caem umas árvores, que curiosamente não foram cortadas, só cortam aquelas que nunca caíram.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A pá e a vassoura


Há quem diga que foram feitos um para o outro. Não é verdade. Nem sequer era daqueles casos evidentes de amor à primeira vista. Não havia ali amor, apenas interesse.
Um mundo inteiro de interesses os separavam. Uma pá da rua e uma vassoura de casa. De boas famílias, habituada a varrer migalhas de pão de ló e borbotos de lã de Caxemira. Um dia saiu à rua, perdeu-se e por lá ficou. Apesar do aspecto mantinha os mesmos sonhos de grandeza e mania da superioridade.
Um dia encontraram-se numa obra. A pá a abrir caboucos, a vassoura a varrer o entulho do passeio. Por onde a pá sujava, a vassoura ia atrás e limpava. Mais uma vez os olhares desatentos a deixarem-se enganar pelas aparências, sobre o quem anda atrás de quem.
A pá, mal a viu, achou que era a vassoura com que sempre sonhara. Ficou, pode-se dizer, apaixonada. Triste ilusão, pobre pá. Sem conhecer nada do seu passado ou dos seus interesses, deixou-se levar pelas aparências, foi o que foi.
A vassoura pelo seu lado sabia muito bem o que queria: queria voltar para casa. É certo que tinham alguns pontos em comum, pois tinham, mas eram mais aparentes do que reais, e de qualquer forma eram manipulados segundo as suas próprias conveniências. Nunca lhe passara pela cabeça arranjar uma pá e muito menos de rua, velha, gasta e a cheirar a suor e pó das obras. O que sonhava mesmo arranjar era um espanador, daqueles com penas de pavão e cabo de marfim.
Enfim, de desilusão em desilusão, de desengano em desengano, lá foram seguindo o seu aparente caminho juntos por força das circunstâncias.
Quis o destino que a obra, a abertura de uma vala para colocação de novas condutas, os levasse a passar na rua onde ficava a casa da vassoura. Não olhou para trás nem pensou duas vezes, logo que conseguiu arranjou maneira de regressar.
O trabalho ficou assim mais duro e solitário para a pá. Abertos os caboucos, tinha depois de tirar, à sua maneira e conforme podia, o lixo dos passeios. Nada que lhe tirasse a capacidade de sonhar. Continuava a sonhar com uma vassoura, mas desta vez tinha que ser uma da sua classe social.


domingo, 18 de setembro de 2016

A história de uma caneca de cerveja


Um dia encontrei-a. Estava mais magra, tive até dificuldade em reconhecê-la. Não, não estou a dizer que ela era gorda. O aspecto geral era magra, embora a roupa folgada disfarçasse, o que me chamou a atenção foi um pescoço de galinha, tipo "pele e osso" a sair da blusa, e onde se notavam as veias salientes,  Por cima, um rosto encovado, e uns olhos escuros, ela que até tinha os olhos claros, Pareciam tristes, mas quem sou eu para falar da tristeza alheia.
Chamei-a a medo, com receio de me enganar, mas aparentemente reconheceu-me logo e veio ter comigo. Levantei-me, cumprimentá-mo-nos e ficamos ali a olhar, com cara de parvos, pelo menos era essa a sensação com que fiquei. Deixei-me cair na cadeira e disse-lhe para se sentar também.
Não sei se é possível dividir o cérebro, mas eu acabei de dividir o meu e enquanto uma metade procurava desesperadamente algo para dizer, a outra metade recrimináva-me por a ter chamado, eu que não tinha nada para lhe dizer.
As únicas frases trocadas eram as banais "olá como estás" e "o que é que tomas", e coisas do género, até ela ter reparado que eu estava a tomar uma caneca de cerveja e comentar que nunca me viu beber tanto. De facto eu dantes quase não bebia, o desporto levado a sério a isso obrigava.
Recriminei-me por beber tanto. Se eu me tivesse limitado a beber a imperial do costume há muito que não estaria ali e não a teria encontrado.
Mas hoje, por qualquer razão desconhecida, pedi uma caneca, e ali fiquei. E agora?

sábado, 17 de setembro de 2016

À espera que o dia volte


- Tenho medo do escuro, sabes...
Não sabia, nunca lhe tinha dito.
Recordou-se que só se conheciam há três meses. É tão pouco tempo, É claro que não sabiam quase nada um do outro.
- Quando estou deitado ouço barulhos, percebes, depois levanto-me e tento perceber de onde vêm ...e nada. Acho que vêm do meu cérebro.
Abanou a cabeça como quem está a perceber.
Fez uma pausa. Achou que estava a falar demais. Não devia contar isto a quem conhecia há tão pouco tempo. Medos são as últimas coisas que se confessam a alguém.
Sentiu que tinha um par de olhos colados em si, à espera que continuasse. Continuou.
- A noite para mim é apenas um intervalo, enquanto espero que o dia volte.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A viagem


A mala era de cartão, mas a vontade era de ferro. E nem as condições adversas impediram que preparasse a partida. Porque era preciso partir. Estavam a acontecer factos demasiado estranhos para poderem ser ignorados.
Em primeiro lugar havia a questão das ligações. Não tinha ligação a nada. As que houve no passado desligaram-se. Depois havia as presenças que não passavam de ausências mal disfarçadas. Já para não falar do modo errante de vida onde nada batia certo.
A única coisa que havia ali a fazer era comprar um bilhete de ida. O destino pouco importava. A viagem sim é que era importante.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O brinquedo


O senhor da loja bem que me perguntou se eu tinha cabos. Que sim, respondi eu.
Sim, tenho UM cabo, mas o brinquedo novo precisa de DOIS cabos.
E só me lembrei quando o fui a ligar.
Que estúpido.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Filosofia de fim de tarde


- Claro, doutor.
- É isso mesmo sr. engenheiro.
- É como vos digo, reparem bem à vossa volta, vejam a quantidade de licenciados. Isto são tudo cursos de letras ou de história ou de ciências humanas. Já pensaram que isto é facílimo? Qualquer um tira um curso destes, é só decorar umas coisas e prontos. Agora, estudar matemática ou física é que revela a inteligência das pessoas.
- Pois é doutor, nunca se viu tantas mulheres com cursos superiores, elas têm jeito para decorar datas e números de telefone e coisas assim, para elas deve ser fácil tirar esses cursos.
- Ora nem mais. Ó doutor faça aí sinal ao criado, ele que traga mais gelo, já tenho a garganta seca.


segunda-feira, 12 de setembro de 2016

A escarpa dos ventos uivantes


Não gostaria de ali passar a noite, era a única ideia que lhe vinha à cabeça. E já tinha passado tantas noites em tantas praias. Mas ali...
Olhando em volta o que via era uma escarpa imponente atrás de si e o mar sem fim à sua frente. E era precisamente por isso.
Do mar soprava o vento gelado que lhe arrancava o chapéu e despenteava o cabelo, que batia em cheio na rocha e penetrava em cada orifício, que trepava por cada fresta até ao cimo e depois já livre da parede que oprimia continuava o seu caminho até às nuvens.
Cada abertura na parede rochosa produzia à passagem do ar o seu som característico, e todas juntas criavam uma sinfonia de gritos como se todos os naufragos do mundo ali tivessem ido parar arrastados pelas correntes.
Sim, ainda bem que não iria passar a noite ali.

domingo, 11 de setembro de 2016

Praia das sombras


Vagarosas, as sombras movem-se sobre a água cor de prata. A intervalos regulares uma nova onda chega até à praia, despeja a água que trás ao som da sua música e retira-se levando consigo para as profundezas os acordes da sua melodia.
Maré cansada esta que não faz mais do que imprimir reflexos de prata nas águas da baia.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Escada para as nuvens


Chegado lá acima deixei cair o martelo. Tive de voltar a descer. Mas primeiro parei e olhei em volta. Queria ter a certeza que a escada ia mesmo até às nuvens. Dali de onde estava não me pareceu. Continuavam tão distantes como quando estava no chão. Resignado desci, peguei o martelo e voltei a subir. Desta vez tinha martelo, não tinha era pregos. Respirei fundo e iniciei o caminho descendente. Fui à caixa dos pregos, coloquei meia duzia no bolso e recomecei a subir. A meio da subida lembrei-me de olhar para cima. Confirma-se, a tábua não estava lá. Estava a ficar um bocado farto desta obra. Entre o cansaço das constantes subidas e descidas e a vontade de desistir, ali fiquei a olhar o vazio.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Excesso de carga


Às vezes não se aguenta, simplesmente não se aguenta. E então alguma coisa acaba por partir, normalmente o elo mais fraco.
Neste caso foi a borracha, porque o ferro é mais resistente. Noutras situações, partem-se outras coisas.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

No rasto do desconhecido


Quem és tu que te aproximas e te afastas ao som de trovoadas retumbantes? Porque caminhas como se quisesses fugir do ontem, e depois regressas como se não houvesse amanhã? Que destino te traz sempre pendente de opiniões que possas encontrar? Qual o segredo da tua eterna desconfiança? Que caminhos te faltam percorrer para chegares onde nunca vais chegar? Quanto tempo demora a viagem ao interior do teu pensamento?
Eu, espectador da distância infinita, percorro em silêncio os caminhos das trevas. Acendo nas pedras a fogueira do esquecimento, e enrolado nos trapos velhos que a memória ainda permite, adormeço a um canto tentando sonhar.
Boa noite.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

A cerveja


Escorrega melhor a cerveja ao som das palavras.
Na sombra do entardecer, entre a parede protectora da música no jardim e o tecto feito de folhas das árvores, correm rios de ideias, aqui e ali salpicados da espuma da cerveja.
Os lábios afirmam, os olhos expressam, as mãos acentuam. E quando parece que o calor vai finalmente vencer transformando os corpos em folhas secas transportadas pelo vento, bebe-se mais um gole. e fica a garganta pronta para a continuação do debate.
Dos desidratados não reza a historia.

Trio


Domingo, 4 de Setembro, Jardim da Estrela, Lisboa
O Trio é composto por André David na guitarra e banjo, Yaw Tembe no trompete e Pedro Monteiro no contrabaixo.


Um grupo para seguir com atenção.






sábado, 3 de setembro de 2016

Na feira


As minhas únicas palavras por agora são de agradecimento aos amigos.
Os outros, os pseudo-importantes, que dizem com um sorriso amarelo "Ah que giro, na feira", enquanto se chegam pra lá cheios de nojo, também irão ter direito a umas palavras um dia,
Fotos tiradas pela Catarina.


As madeiras foram feitas em conjunto por mim e pela minha antiga sócia Inna.




sexta-feira, 2 de setembro de 2016

O carpinteiro com caruncho


Perdi a minha sócia.
Agora vou parar para pensar se vou continuar com o trabalho.


Todas as peças são ideias de Inna Nurlieva, que também tratou da decoração e acabamentos finais.
Eu limitei-me a cortar as peças de madeira.