Escritos na varanda

Imagino-me a escrever na varanda, ao fim da tarde, com o Sol a por-se no horizonte e uma bebida gelada ao lado. Como eu nem sequer tenho varanda, tudo isto é ilusão.
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sábado, 1 de março de 2014

Acrescenta um ponto ao conto, volume 1


Foi hoje lançado o livro Acrescenta um ponto ao conto, volume 1.
Trata-se de um conjunto de três contos, que têm a particularidade de terem sido escritos por vários autores, que pelas mais variadas razões se foram conhecendo, de uma forma real ou virtual, e decidiram aderir a este projecto idealizado pela nossa amiga comum Luisa Vaz Tavares.


Cada conto é composto por vários capítulos, cada um dos quais escrito por um dos autores, dando continuidade ao capítulo inicial.


Desta amálgama de vivências, convivências, sensibilidades, experiências, todas diferentes mas todas orientadas para um fim comum, resultam histórias que... bom, o melhor é lerem, eu sou suspeito para estar a falar porque sou um dos autores.


Os direitos de autor desta obra revertem a favor da Liga dos Amigos do Hospital de Portalegre.


Algumas destas fotos não são minhas, foram tiradas pela Fátima Ribeiro e estão devidamente assinaladas.
Obrigado Fátima, pela partilha.


Endereço da Pastelaria Studios Editora:
http://www.pastelariastudios.com/index.html






quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Elevadores e companhia

Eu esta noite tive um pesadelo
Sonhei que era apenas um processo
Pousado num armário com desvelo
Mas preso com agrafos em excesso.

Eu hoje quase fiquei sem cabelo
Quando vi como era o novo acesso.
Ascensor? Pois agora já nem vê-lo.
O degrau está de novo de regresso.

Já não tenho mais vontade de subir
Degraus que não levam a nenhum lado.
A vontade que eu tenho é de fugir.

Só não vou por causa do ordenado,
E a reforma que ainda está pra vir.
Por isso vou suportar este fado.

Um dia, no princípio do longínquo ano de 2005, os colaboradores do banco X na avenida Y na cidade Z chegaram ao local de colaboração e encontraram o elevador avariado.

O banco X é um banco da nossa praça. Não refino o nome porque acho que nem a miserável publicidade neste miserável texto que quase ninguém lê eles merecem.

O local de colaboração está para os colaboradores como o local de trabalho está para os trabalhadores. É um local onde se passa uma grande parte dos dias úteis. Sim, porque há dias inúteis.
Conheço alguns que mesmo em dia inúteis iam até lá. Mas esses não eram colaboradores, eram colaboracionistas. E não andavam de elevador, andavam de Renault Megane ou Ford Mondeo, mas tinham a ilusão de que um dia iriam andar de Audi ou BMW.

Para que não pensem mal do banco X devo referir que sempre teve muita consideração pelos seus empreg... , quero dizer, colaboradores. Tomara que todas as empresas fossem assim. Este banco promoveu todos os seus funcionários. Todinhos, sem excepção. Foram todos promovidos de trabalhadores a colaboradores.
Está bem que não ganharam nada com essa promoção (muito pelo contrário), mas também o que é que isso interessa? É preciso não esquecer que estamos a falar de um meio em que se vive das aparências.

Bem, voltando ao elevador, a avaria estendeu-se por uma semana. Uma contrariedade apenas, no meio de tantas outras no dia a dia. Pressa em arranjá-lo para quê? Os camelos, ou melhor, os colaboradores estavam lá para subir (e já agora para descer também, caso não quisessem lá passar a noite).

Este episódio passou-se ao fim de longos 25 anos de trabalho, ou colaboração, já nem sei bem, em que o espectro das reformas antecipadas pairava no horizonte de muitos dos colaboradores. Para conseguir vir-me embora com a sanidade mental intacta, tinha que me fazer passar por maluco. Parece contradição. Mas não é.

As musas da insanidade ditaram-me o soneto que encima este texto. E eu aproveitei a oportunidade para mostrar mais uma vez o quão farto estava daqueles anos todos. Para isso imprimi-o numa folha com letra tamanho 14 para se ver bem e colei-o na parte lateral do meu monitor, substituindo uma outra folha que dizia: “Você disse urgente? AH AH AH”

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A fuga da galinha

A quinta tinha o aspecto habitual de qualquer quinta: um local pacato, longe do reboliço próprio das cidades.
Puro engano, era apenas ilusão. As quintas têm vida própria, e embora não seja perceptível, em muitos aspectos os padrões de comportamento assemelham-se aos das cidades.

É comum falar-se, pela negativa, no ritmo de vida próprio das grandes cidades, das pressões a nível laboral, do tempo perdido em filas e transportes, do stress que isso tudo provoca, etc.
Em contrapartida, numa quinta, parece tudo calmo. No entanto um limoeiro que não dê limões em breve se vê transformado em estacas para uma qualquer vedação, ou um porco que não engorde por falta de apetite, depressa saberá, por experiência própria, o que é um leitão assado. Ai de quem não cumprir os objectivos.
Ou seja, numa quinta, tal como numa cidade, aplica-se o lema básico da sobrevivência: “comer e não ser comido”!

Havia, no entanto, um local da quinta onde havia alguma agitação, era no galinheiro. Havia visitas frequentes e até algumas discussões. A culpa era dos ovos, dizia-se.

Katy era uma galinha, já velha e de crista empinada. Há já algum tempo que os ovos não brotavam como antigamente, e daí as discussões, não só com o fazendeiro, mas também com os outros animais da quinta a quem Katy ia pagando com ovos os favores que recebia. No entanto, a galinha Katy sempre teve o engenho necessário para fazer com que todos “contassem com o ovo no cú da galinha”. Até um dia.

É que a galinha Katy conheceu o Galo de Barcelos, e a partir daí as coisas nunca mais foram as mesmas. O que já estava mal, piorou. Os poucos ovos que havia, em vez de irem para quem há muito aguardava por eles, iam para o Príncipe dos Pés de Barro. O descontentamento geral aumentou, sucederam-se as discussões, as ameaças.

Um dia o fazendeiro parou a carrinha ao lado do galinheiro e descarregou uns quantos tijolos e sacos de cimento. A galinha Katy, surpreendida, perguntou:
- “Para que é isto?”
- “Vou fazer aqui obras, o galinheiro já não me serve para nada, e tu vais conhecer por dentro um arroz de cabidela”, respondeu o fazendeiro.

A galinha Katy apercebeu-se então da realidade. Estava sózinha. Quer dizer, sózinha, sózinha não estava, tinha o Galo de Barcelos, mas este, além de sonhos não lhe tinha trazido nada de útil. Os restantes animais não iriam ajudá-la, estavam fartos de promessas e de mentiras. Se não fosse a panela do fazendeiro, seriam as mandíbulas do pastor alemão ou os cornos da vaca, alguma coisa haveria de acabar com ela. Só havia uma coisa a fazer: fugir dali.

Falou com o Galo de Barcelos. Tinham que sair dali rapidamente. Só havia uma coisa que podia atrapalhar a fuga, era o frango.
A galinha Katy tinha um frango, e teve que pensar muito no que seria melhor fazer. O frango poderia ser-lhe útil no futuro, e por isso decidiu levá-lo, mas por outro lado como a fuga teria de ser precipitada, a sua pouca idade poderia atrapalhar. Teve então uma ideia, iria falar com o Porco Espinho. Era dos poucos animais da quinta que não a incomodava muito, apesar de lhe estar a dever umas boas dúzias de ovos.

O Porco Espinho, apesar do nome, não era um ouriço, era mesmo um porco, um suino, igual àqueles com gripe, só que sem o respectivo vírus. Tinha este nome porque tinha um espinho atravessado na garganta, que não o deixava falar muito. Vivia numa pocilga num recanto afastado da quinta.

- Olá Porco Espinho, disse a galinha Katy, preciso de um favor teu.
- Claro, caso contrário não vinhas até aqui. O que é? respondeu o Porco Espinho.
- Olha, as coisas estão mal no galinheiro, não há milho, e o pouco que há é de má qualidade, não é o suficiente para eu conseguir por ovos, e o fazendeiro quer transformar-me em canja, vou ter que sair rapidamente, mas quero-te perguntar se podes ficar aqui com o frango, quando encontrar outra quinta e outro galinheiro venho buscá-lo, disse a galinha Katy.

O Porco Espinho já conhecia o frango. A galinha Katy pouco cuidava dele e muitas vezes era para ali para a pocilga que ele ia comer alguma coisa.
Embora não se considerasse a companhia mais apropriada, achava para si próprio que o frango estaria melhor consigo do que com a mãe.

- Olha, disse ele, tu conheces uma canção do Paulo DesenGonz(o)ado, aquela que tem um verso que diz assim “...sei-te de cor...”? Eu sei que tu não acreditas, mas eu sei-te mesmo de cor, melhor que ninguém, por isso não me venhas com essas histórias,...
A galinha Katy interrompeu-o e disse:
- Mas o que é que tu queres dizer com isso? Não queres ficar com o frango uns tempos? Achas que eu estou a brincar? Não vês a crise que vai no milho...
Agora foi a vez do Porco Espinho a interromper.
- O que eu quero dizer é que quem não te conhecer é que pode acreditar nas tuas histórias, não eu. O problema não é o milho, nem o galinheiro, nem o fazendeiro, és tu. Julgas que eu não sei os problemas que tens com a vaca, o perú, o carneiro, a égua, o gato, e por aí fora? Achas que eu não sei que já estiveste em outro galinheiro e tiveste que fugir pelas mesmas razões?
- Se o problema é com o fazendeiro, quer dizer que antes de saires vais resolver tudo com os restantes animais, vais?
- E em relação ao frango, não te preocupes porque eu acho que ele está melhor comigo do que contigo. Vou ficar com pena quando o vir partir, não por mim, mas por ele, porque sei que vai mudar para pior. E sobretudo porque sei que te vais aproveitar dele. Acho que vais fazer como os talibans,...

A galinha Katy estava a olhar para o Porco Espinho com os olhos muitos abertos com o espanto. O Porco Espinho achou que ela não estava a perceber e resolveu explicar:
- Sim, diz-se que os talibans usam as mulheres e as crianças como escudos humanos, e eu acho que com o frango tu vais fazer o mesmo, vais usá-lo como alibi para a tua história no próximo galinheiro que encontrares, vais fazer de coitadinha, usá-lo como desculpa para as tuas pedinchices, de coisas que não tencionas pagar.

Agora não eram apenas os olhos da galinha Katy que estavam abertos de espanto, era também o bico. Não estava habituada a que lhe falassem assim. Resolveu por um ponto final na conversa.

- Olha Porco, eu sei que tu gostas de ter aqui a companhia do frango. Queres ficar com ele ou não? Não te estou a obrigar, não tenho é que ouvir as tuas conversas.
- Além do mais tenho que ir preparar as minhas coisas para sair logo de manhã, quando o fazendeiro abrir o galinheiro. Assim tenho muito tempo, ele só vai dar pela minha falta à noitinha quando o for fechar.

O Porco Espinho, apesar do espinho que tinha atravessado na garganta falou mais do que lhe era habitual. E disse apenas uma pequeníssima parte de tudo o que acumulou ao longo dos anos e que o espinho nunca o deixou dizer. Porém reconheceu que esta era uma conversa que não levava a lado nenhum. Não tinha qualquer intenção de fazer a galinha Katy mudar de ideias, nem estava à espera que ela reconhecesse ou assumisse alguma coisa. Era um caso perdido à muito tempo. Portanto o melhor era acabar mesmo com a conversa.

- Sim, claro, podes mandar o frango, ele não tem culpa de ter uma mãe galinha. Enquanto está aqui, está melhor do que contigo. Olha, vai e não voltes.
- Ah, certo, obrigada, quando o vier trazer vou tentar trazer também um saco de milho...
- Se isso fosse verdade até chamava todos os animais da quinta para verem, era um caso raro!
- Lá estás tu com as tuas piadas de mau gosto, disse a galinha Katy, virando-lhe as costas e terminando com a conversa.

O Porco Espinho ficou a ver a galinha a afastar-se, e a pensar consigo próprio:
- Não acredito em nada do que ela disse. Quer dizer, ir embora deve ir, mas não pelas razões que disse. E voltar para levar o frango? Humm, não me parece. Bem, há coisas mais importantes em que pensar. Está na hora da ração.

O dia seguinte nasceu igual a todos os outros dias. Nenhum dos animais da quinta, à excepção do porco, tinha motivos para suspeitar que aquele dia iria ser diferente. De facto, ninguém se apercebeu de nada até ao fim da tarde, quando o fazendeiro começou a procurar a galinha e o frango. Os animais logo desconfiaram do que poderia ter acontecido, mas ninguém sabia dizer nada. O único que sabia estava calado. Para mais, o Galo de Barcelos também deixou de ser visto.

Passados os primeiros momentos de surpresa e agitação, os dias voltaram à sua rotina habitual. Com uma pequena diferença, a fonte maior dos problemas e discussões tinha desaparecido. Pelo menos até hoje.