Escritos na varanda

Imagino-me a escrever na varanda, ao fim da tarde, com o Sol a por-se no horizonte e uma bebida gelada ao lado. Como eu nem sequer tenho varanda, tudo isto é ilusão.
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terça-feira, 17 de outubro de 2017

O pauzinho na engrenagem


Desde que o tempo é tempo, que a vida funciona sempre da mesma forma, com mais ou menos sobressaltos, mas sempre passageiros.
Quem manda pode, quem não pode obedece, e os privilégios de uns justificam a morte de outros.
É preciso virar tudo ao contrário.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

A rua escura


Fez-se escuro antes de estar escuro. Fez-se silêncio antes de as vozes se calarem. As portas, fechadas, indicavam que cada pequenino mundo se encontrava fechado em si próprio. A cultura da igualdade apesar de todas as diferenças.
E era isto. Apenas isto. Levantar, trabalhar, dormir, para novamente levantar, trabalhar e dormir.
Quanto mais a existência se aproximava dos padrões estabelecidos, mais os peitos se inchavam de orgulho, repetindo interiormente pensamentos que não se atreviam a divulgar.
"- Vês, eu sou mais normal que tu. trabalho mais para parecer melhor que tu, rebaixo-me mais para receber mais que tu, sou mais cumpridor das regras para parecer mais importante que tu, vejo os programas que toda a gente vê, mas em HD, vou de férias quando toda a gente vai mas para mais longe, fico preso nas filas de trânsito como toda a gente mas num carro maior, rio quando toda a gente ri, choro quando toda a gente chora, celebro quando toda a gente celebra, vou às inaugurações onde toda a gente vai, encho os centros comerciais que toda a gente enche, compro os detergentes anunciados na TV que toda a gente compra, vou à praia quando toda a gente vai, compro música em saldo na fnac como toda a gente compra, compro livros no supermercado como toda a gente compra.
Infelizmente morro como toda a gente morre, mas quando isso acontecer vou para o mausoléu da família."

domingo, 28 de agosto de 2016

O urso


Olhava como se quisesse dizer alguma coisa, mas que pode um urso dizer? E mesmo que pudesse, quem o iria entender?
Talvez outro urso, se o houvesse. Mas não havia, a jaula pertencia-lhe por inteiro. E continuava a olhar, fitava cada par de olhos que o olhava do outro lado das grades. E o que via, além da superioridade inerente a quem se julgava superior, era o inconfessável alívio cobarde de quem se encontrava do outro lado de um fosso com vários metros de altura e ainda por cima com grades.
Os olhos saltavam de um para outro rosto, que passavam indiferentes.
Às vezes cansava-se de andar de um lado para o outro dentro da jaula, uma das poucas coisas que podia fazer, e então deitava-se a um canto, com o focinho apoiado nas patas da frente, e ali ficava a olhar sem ver nada.
Havia uma árvore, lembrava-se bem. Ficava no caminho do rio e era um dos seus locais favoritos, até que se transformou no seu pior pesadelo. Um dia ao passar por ela, sentiu uma picada forte e caiu adormecido. Acordou com a trepidação e o barulho do camião que transportava a sua jaula por uma estrada esburacada de terra batida.
Sabia que os ursos e as ursas não têm nomes, mas para si ela era a Daisy, e era com ela que costumava ir à procura de mel.
Que lhe teria acontecido? Ainda pensava nele? Também teria sido apanhada ou continuaria livre a procurar mel? Se calhar com outro companheiro…
Dizem que os ursos não choram. Claro que choram, só que ninguém sabe porque ninguém percebe nada de ursos. Às vezes de medo do humano, o pior predador da terra, outras vezes de ódio.
Estava numa jaula, logo tinha razões para ter medo. Não percebia é porque é que os humanos tinham medo, se até agora nunca tinha feito mal nenhum. Talvez estivesse na altura de começar….
Pensando bem, quando conseguisse apanhar o tratador, ia começar por lhe dar umas dentadas.
Por certo que viriam logo outros e armados com espingardas. Disparariam de certeza. Talvez lhe tirassem a vida.
Esta vida? Pois que lha tirassem, não a queria para nada.


quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Restos do tempo


Restos de um tempo cujo passado não chegou a ter futuro.
Horas ou minutos, dias ou anos, tudo foi varrido da memória.
O relógio perdeu os ponteiros, o calendário perdeu as folhas, as pessoas perderam a lembrança.
Ali, onde as portas não fecham e as janelas não abrem, entre um chão levantado e um tecto a cair, vagueiam formigas e moscas, osgas e aranhas, entre o pó dos anos e o lixo trazido pelo vento.
É a vida possível num local já sem vida.

terça-feira, 12 de julho de 2016

Searas ao vento


Era como se ao fundo do vale acabasse esta vida e começasse outra nova. Ficava por saber se era uma vida nova igual a esta ou diferente.
Havia mais vales, mais encostas, mais searas, sabia disso, e sentia-se culpado porque era a esta que se dedicara.
Já há muito tempo que devia ter esquecido, mas o vento que soprava sobre a seara continuava a trazer-lhe memórias de outros vales.

domingo, 10 de abril de 2016

Um dia igual aos demais


Despiu-se rapidamente que o tempo estava frio, depois vestiu o pijama e enfiou-se dentro da cama. A magra conta bancária não lhe permitia ligar o aquecedor muitas vezes, e de tanto poupar habituou-se à rotina de enfrentar o frio. O corpo habitua-se a tudo, e além disso sempre ouviu dizer que o frio enrija os ossos.
Já de olhos fechados reviu o dia que agora terminava. Nada de novo. O microciclo diário – acordar, viver, adormecer - era em tudo semelhante ao macrociclo da vida – nascer, viver, morrer.

Podia dormir descansado.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A cidade vazia


Era uma cidade onde os bancos de jardim estavam vazios. O próprio jardim estava vazio.
As pessoas, vazias, refugiavam-se longe dos olhares vazios de esperança de quem acidentalmente passava.
Esvaziaram corações e carteiras. Esvaziaram sonhos e desejos. Esvaziaram frigoríficos e despensas. Esvaziaram fábricas e escolas. Esvaziaram até a própria vida.
A cidade, vazia de vida e de vidas jazia solitária e inerte sob o calor do Sol que teimava em passar todos os dias.


segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

A liberdade e a expressão


Sempre foi assim. Há os uns e os outros. Há os que têm direitos e os que têm deveres. Já no tempo do Neolítico havia os chefes das tribos e havia o pessoal das tribos.
Hoje em dia as diferenças não só se ampliaram infinitamente mais como se estenderam a todos os sectores. Qualquer posiçãozinha de merda é logo alvo de abuso de poder, sendo usada para autopromoção de quem a detém.
E depois há os que se acham no grupo dos “uns” e que julgam ter o direito de dizer “não faço”, e acham que os restantes pertencem ao grupo dos “outros” e têm o dever de andar contentes e felizes.
Vamos a ver até quando.


domingo, 11 de janeiro de 2015

O Silêncio


Caiu o pano. No sentido figurado, pois não havia pano. Isso não impediu no entanto que o silêncio e a escuridão se instalassem.
Perfeito. É a melhor maneira de começar de novo!

sábado, 10 de janeiro de 2015

Ensaios abertos e representações fechadas


Ensaios abertos e representações fechadas são as minhas especialidades.
São as minhas especialidades porque foi a única coisa que fiz, nunca fiz mais nada.
Só que um dia…
A vontade morreu. Bem estrebuchou mas, puseram-lhe por cima a tampa do caixão.
Sem luz e sem ar, adormeceu num instante.

domingo, 14 de dezembro de 2014

O menino a quem contaram histórias



Os olhos semicerrados devido à claridade intensa estavam fixos no vazio. O infinito, se é que existe, devia ter mais conteúdo do que aquilo que tinha à sua frente: água e mais água, sempre vazia, sempre em movimento, e um espaço a que chamam céu, imenso, vazio, apenas preenchido com a com a azul.

Não é que esperasse encontrar ali alguma coisa. Ao fim deste tempo todo já não esperava encontrar nada. E no entanto...

Tinham-lhe contado tantas histórias sobre o infinito. E também sobre a eternidade. A eternidade está para o tempo como o infinito está para o espaço. Mas seria mesmo assim?

Quem lhe contou estas histórias contou-lhe muitas outras que se revelaram mentira, porque é que estas haveriam de ser verdadeiras?

Quem lhe contava histórias de igualdade sentia-se superior às demais criaturas.

Quem lhe contava histórias de amor odiava tudo o que fosse contrário aos seus princípios.

Quem lhe contava histórias de paz fazia a guerra a quem quisesse ser livre e independente.

Quem lhe contava histórias sobre o valor do conhecimento falava-lhe de pregos para ocultar a sua ignorância sobre parafusos.

Sim, tudo o que lhe contaram era mentira.

A eternidade de facto não existe, o fim já não andará muito longe.

Tirou o chapéu e com as costas da mão limpou da testa os pingos de suor devido ao calor.

Estava na hora de regressar, já ali estava à bastante tempo. Com algum custo curvou-se e apanhou a bengala caída na areia. Apoiando as mãos na pedra onde se sentara fez força para ajudar o corpo a erguer-se.

Deitou um último olhar ao vazio que tinha diante de si, e murmurando entre dentes “Infinito? Bah...” deu meia volta e afastou-se coxeando.



domingo, 9 de novembro de 2014

A morte do artista


A morte, essa parte integrante da vida, está sempre presente desde o nascimento. Pertence-lhe. Como tal, o proprietário da vida, é por inerência, o proprietário da morte.
Não existe vida depois da morte, tal como não existe morte antes da vida. A única coisa que a morte faz é transformar vivos em mortos. Não transforma pessoas que não prestam em pessoas boas. São por isso completamente despropositados os discursos e elogios aquando de algumas mortes.
Mais do que a dignidade da morte, interessa sobremaneira a dignidade da vida. É a vida que tem que ser vivida, não a morte, e é em vida que se podem fazer mudanças que contribuam para o progresso, o desenvolvimento, o bem estar, ou seja, a dignidade.
Num mundo que se rege pelas aparências, a morte não foge à regra. Desde logo na forma de vestir o morto. Os estereótipos da vida prolongam-se pela morte fora. Mas sobretudo na forma como se gasta dinheiro com a morte. As agências funerárias são autênticas agências de viagens. E no fundo a viagem é tão curta, apenas até ao quintal que existe em quase todas as localidades e a que chamam cemitério.
As pessoas morrem acima das suas possibilidades. Se há os que vão a funerais apenas para serem vistos, há os que pagam funerais apenas para impressionar quem lá vai.
As aparências na morte reflectem as aparências com que se tentou mistificar a vida.


domingo, 3 de agosto de 2014

No país das árvores anãs


No país das árvores anãs as pessoas são gigantes.
No país das árvores anãs não são só os tamanhos das árvores e das pessoas que estão invertidos, todos os valores estão invertidos.
Sobretudo o valor da vida e da morte.
Um dia virá, espero eu, que os assassinos tenham todos o mesmo destino.

sábado, 18 de setembro de 2010

A pena, a morte e a pena de morte

A pena

“Numa mão sempre a espada e noutra a pena”
Luís de Camões, Os Lusíadas, canto VII


A pena esteve desde sempre associada à morte.
A mão que segura a pena que escreve é a mesma que empunha a espada que mata.
Temos pena de quem morre, porém inventámos a pena de morte.
Depenar uma galinha implica matá-la primeiro.
Vários usos para as penas poderiam ser referidos, como por exemplo a almofada de penas, todos eles no entanto implicam a prévia morte dos seus anteriores e legítimos proprietários, as aves.

“O pavão de hoje é o espanador de amanhã”
(autor desconhecido)

A morte

“A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome para qualquer fim”
José Afonso, A morte saiu à rua

Estar morto não é o contrário de estar vivo, como foi alarvemente dito um dia.
Estar morto é uma consequência e uma continuação de se ter estado vivo.
Há mortos que continuam vivos nos nossos pensamentos.
Só morre quem viveu.
Não existe vida eterna, logo quem vive tem de morrer.
Morrer custa muito, sobretudo para quem está (continua) vivo.
Há quem não goste de morrer e prefira continuar vivo. Feitios.
A morte é um negócio. A natural, para os cangalheiros. A não natural sobretudo para o maior fabricante mundial de armas.

A pena de morte

Quando a pena se junta à morte, temos pena mas cria-se a pena de morte.
A pena de morte existe por todo o lado, é um facto.
Há pessoas condenadas a morrer porque tiveram o azar de estar à hora errada no local errado, o caminho da bala disparada por um qualquer assassino assaltante.
Há pessoas condenadas a morrer porque tiveram o azar de estar à hora errada no local errado, o caminho de um carro guiado por um qualquer condutor irresponsável e assassino.
Houve pessoas condenadas a morrer porque tiveram o azar de ter nascido em países possuidores de bens como ouro, canela e marfim, bens esses cobiçados pelos poderosos assassinos de então.
Há pessoas condenadas a morrer porque tiveram o azar de nascer em países possuidores de petróleo, pretendido pelos poderosos assassinos actuais.
Há pessoas condenadas a morrer de fome porque alimentá-las sai muito caro. dinheiro suficiente para isso, como porém é impossível (ao dinheiro) estar em dois sítios ao mesmo tempo, quem nos (se) governa prefere com ele alimentar contas na Suíça e em offshores do que alimentar pobres famintos.
Houve pessoas condenadas a morrer pela justiça divina, aplicada por seres humanos. Os maus, quando morrem, têm à sua espera do outro lado o caldeirão e o tridente do diabo, por isso não deveria ser preciso fazer nada, mas, não vá o diabo tecê-las e isto da religião ser tudo uma treta, é conveniente aqui deste lado dar uma ajudazinha. O que só prova que nem os próprios apregoadores das tais verdades acreditam naquilo que apregoam.
Há pessoas condenadas a morrer pela justiça do direito penal. Até têm direito a um padre nos últimos instantes de vida. Não é bem justiça divina mas anda lá perto, é quase como se fosse.
O homem, enquanto foi um animal irracional semelhante aos macacos a partir dos quais evoluiu, matava para comer. Depois, com a evolução descobriu a existência de valores e passou então a matar para se alimentar a si e aos seus valores.

Na vida e na morte, como em tudo o resto, há desigualdades. Está tudo mal distribuído.
Dependendo do ponto de vista, isto pode ser uma causa ou uma consequência de todos os males e problemas que existem pelo mundo fora.
E era tão fácil resolver estes problemas. Bastava que a morte estivesse mais bem distribuída.
Não é preciso andar por aí a matar mais gente, bastava que houvesse uma melhor distribuição. Há tanta gente boa que morre. Se fosse possível salvá-los e se começassem a morrer mais dos outros...